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O que é raça? Por que psicólogos e terapeutas precisam entender essa construção social.

Atualizado: 18 de out.


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Me pergunto com frequencia, como um conceito que tem sua base consolidada em uma teoria biológica tão antiga e que possui uma história pouco conhecida pode estar tão arraigado em nossa cultura?


A classificação racial serviu para legitimar a exploração e o tráfico escravista  de indígenas e africanos. Tais classificações resultaram na construção de uma hierarquia entre os grupos humanos, atribuindo-lhes características de comportamento e personalidade para justificar a superioridade de uns sobre os outros. O naturalista Carl von Linné, em sua classificação do século XVIII, dividiu os humanos em quatro grupos e atribuiu características específicas a cada um: europeus como "vigorosos e inventivos", asiáticos como "severos e orgulhosos", indígenas americanos como "obstinados e contentes", e africanos como "negligentes e preguiçosos". Essas descrições, completamente arbitrárias, serviram de base para hierarquias que perduram até hoje.


Um dos maiores equívocos de Lineu foi seu determinismo biológico, ao vincular traços físicos a supostas predisposições psicológicas e morais. Por exemplo, ele descreveu europeus como "governados por leis" e africanos como "governados por caprichos", atribuindo diferenças culturais e históricas a uma essência racial fixa. Essa visão ignorou completamente a capacidade humana de se transformar e a influência de fatores sociais, econômicos e ambientais no comportamento – um erro que a antropologia moderna desmontou ao demonstrar que a diversidade humana não se reduz a categorias biológicas rígidas.


Além disso, sua classificação carregava uma hierarquização implícita. Embora Lineu não afirmasse abertamente a superioridade de um grupo sobre outro, suas descrições – como associar europeus a termos como "inventivos" e africanos a "negligentes" – criaram uma escala valorativa que seria explorada por teorias racistas no século XIX. Essa categorização refletia mais os preconceitos de sua época do que qualquer evidência empírica, revelando como a ciência pode ser contaminada por visões de mundo dominantes.


 Nessa classificação, o europeu era colocado no topo da hierarquia.. No entanto, a raça não tem qualquer fundamento biológico; é uma invenção social, criada para servir a interesses específicos de poder e dominação. Essa classificação racial não era neutra; ela serviu para estabelecer uma hierarquia entre os grupos humanos, atribuindo-lhes características de comportamento e personalidade que justificavam a superioridade de uns sobre os outros.


Grada Kilomba em seu livro “Memórias da plantação diz que 'a raça não é um conceito biológico, mas uma construção social que foi criada para justificar a exploração e a dominação de certos grupos. Ela não existe na natureza, mas é produzida e reproduzida através de práticas sociais, discursos e instituições'. Hoje, essa construção social continua a moldar nossas instituições e práticas, perpetuando desigualdades raciais em áreas como educação, saúde e justiça. Para nós psicologos e terapeutas corporais, compreender a natureza social da raça é essencial para evitar a reprodução de estereótipos racistas e oferecer um cuidado mais consciente e inclusivo.


O conceito de raça, tal como o empregamos hoje, nada tem de biológico. É um conceito carregado de ideologia, pois, como todas as ideologias, serve a interesses específicos." Kabenguele Munanga


Esse processo foi central para a desumanização de povos indígenas, africanos e outras populações que sofreram com a expansão europeia. Onde quer que os europeus fossem, levavam consigo a ideia de superioridade racial e civilizatória, que mais tarde se consolidou como a base do racismo científico.

Em seu trabalho, Achille Mbembe discute essa questão, afirmando que "a raça é uma ficção histórica inventada para justificar a exploração e a violência, criando uma linha divisória entre aqueles considerados humanos e os outros". Ele destaca que a noção de raça foi usada como ferramenta de poder, sempre em benefício de quem estava no controle das narrativas.

Vale lembrar que a ideia de raça não existia em outras culturas. Povos indígenas e africanos, por exemplo, não utilizavam essa categorização hierárquica entre seres humanos. Trata-se de uma construção exclusivamente europeia.


À medida que  desencouraçamos nossos olhos vamos percebendo cada vez mais o quanto o conceito de raça é central em nossa organização social e em nossa construção emocional. Ele é uma marca em nossa história trazida junto com a colonização. Por mais que tenhamos evidencias cientificas concretas de que não existam diferenças genéticas relevantes entre pretos, pardos, brancos, indígenas, asiáticos, temos uma sociedade que se estrutura em termos sociais, individuais e institucionais em torno de uma concepção eurocêntrica cujas bases biológicas já não possuem nenhum tipo de sustentação. 


O Projeto Genoma Humano, concluído em 2003, sequenciou o DNA humano e revelou que todos os seres humanos compartilham 99,9% do seu DNA. As diferenças genéticas que existem são minúsculas e não correspondem às categorias raciais tradicionais.


Estudos de genomas mostraram que todos os seres humanos têm uma ancestralidade comum recente em termos evolutivos, reforçando que a espécie humana é muito jovem e geneticamente homogênea. Deixo aqui algumas citações e referencias de artigos que dão a base necessária para esse entendimento:



 "Nossos resultados revelam altos níveis de variação genética dentro das populações e diferenças limitadas entre populações, consistentes com padrões de fluxo gênico histórico." – Tishkoff, S. A., et al. (2009).

The Genetic Structure and History of Africans and African Americans.



 "Não existe base genética para a classificação racial, pois a maior parte da variação humana ocorre dentro, e não entre, as populações."

– Cavalli-Sforza, L. L. (2000).

Genes, Peoples, and Languages.



A psicologia enquanto ciência que se  consolidou no final do século XIX e início do XX, foi profundamente influenciada pelo ambiente científico de sua época, que estava imerso no racismo científico, no evolucionismo social e em tentativas de classificar os seres humanos em hierarquias baseadas em características biológicas.


Ainda que figuras como Wundt, Freud, Pavlov e Skinner não tenham, necessariamente, estruturado suas teorias com base em conceitos raciais, suas pesquisas foram desenvolvidas dentro de um campo que naturalizava diferenças raciais. Esse contexto possibilitou que muitas dessas ideias fossem apropriadas para justificar desigualdades sociais e consolidar a supremacia branca sob um verniz de neutralidade científica.


A negligencia da psicologia enquanto campo cientifico das questões raciais não significa que ela fosse neutra nesse aspecto. Pelo contrário, ao ignorar as relações raciais e os efeitos psicológicos do racismo, a disciplina acabou reforçando a visão de que as diferenças entre grupos eram naturais, e não socialmente construídas. Isso é visível, por exemplo, na forma como a psicanálise clássica ignorou as experiências de pessoas racializadas ou na forma como testes de inteligência foram usados para justificar políticas eugenistas.


A psicologia, enquanto ciência, foi construída dentro de um paradigma que naturalizava hierarquias raciais e, em muitos momentos, serviu para justificar a exclusão da população negra de espaços de poder e prestígio. Desde os primeiros testes de inteligência até as teorias sobre personalidade e comportamento, a ideia de que negros seriam intelectualmente inferiores sustentou práticas que os posicionavam como menos capazes, seja no ambiente escolar, no mercado de trabalho ou nas avaliações psicológicas. A psicologia não apenas absorveu essas premissas, mas ajudou a consolidá-las ao longo do século XX.


Além da suposta inferioridade intelectual, outros estereótipos racializados foram sendo reforçados pela psicologia. Negros foram frequentemente descritos como impulsivos, pouco racionais, agressivos e emocionalmente instáveis, o que, por um lado, serviu para justificar sua exclusão de determinadas funções e, por outro, reforçou a ideia de que precisavam ser disciplinados e controlados. Essa construção também teve implicações diretas no sistema penal e nas políticas de segurança pública, onde a percepção de negros como perigosos e agressivos se tornou justificativa para práticas de vigilância e repressão desproporcionais.


A associação entre negritude e trabalho braçal também foi fortalecida por discursos psicológicos que naturalizavam a suposta aptidão dos negros para atividades físicas, enquanto desvalorizavam suas capacidades intelectuais. Essa ideia, que remonta ao período da escravidão, ainda se manifesta em desigualdades no mercado de trabalho e na limitação de oportunidades para a população negra em espaços acadêmicos e científicos.


Outro aspecto fundamental é a hipersexualização dos corpos negros, que aparece tanto nas representações midiáticas quanto nos discursos médicos e psicológicos. Mulheres negras foram historicamente vistas como promíscuas e sedutoras, enquanto homens negros foram construídos como ameaçadores, reforçando a ideia de que a sexualidade negra é algo a ser contido ou explorado. Essas construções não são meras abstrações teóricas, mas têm impactos concretos na forma como negros são percebidos e tratados em diversas esferas da vida social.


Dentro das terapias corporais inspiradas na obra de Wilhelm Reich, esses estereótipos também precisam ser problematizados. A ideia de que o corpo negro é “forte”, “rígido” ou “bruto”, que pode suportar mais que outros corpos pode se infiltrar de maneira sutil no olhar do terapeuta, levando a leituras enviesadas sobre estrutura corporal e expressões emocionais.  Se a repressão sexual e emocional está diretamente ligada à couraça, como ignorar que a experiência negra é atravessada por séculos de violência, medo e contenção forçada? O silêncio, a postura retraída, a dificuldade de acessar certas emoções não são apenas dinâmicas individuais, mas respostas adaptativas a um ambiente hostil. Se o terapeuta não está atento a isso, corre o risco de patologizar reações que são, na verdade, formas de sobrevivência.


A psicologia, ao longo de sua história, não apenas ignorou essas construções raciais, mas muitas vezes as reforçou. Seja na adaptação de testes psicológicos baseados em padrões eurocêntricos, na validação de teorias que associavam características raciais a traços comportamentais ou na omissão diante dos impactos psicológicos do racismo, a disciplina se consolidou sem questionar as bases coloniais que sustentavam suas práticas. No campo das terapias corporais, essa crítica é ainda mais urgente. Se a proposta é liberar a energia vital e recuperar a espontaneidade, é preciso primeiro reconhecer como o racismo moldou a própria relação dos negros com seus corpos e emoções. A couraça também é racializada, e qualquer abordagem terapêutica que ignore esse fato corre o risco de perpetuar as mesmas violências que pretende tratar. 




 
 
 

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