A ideia de que o silêncio não é apenas a ausência de palavras, mas uma forma de violência, é poderosa. O silêncio sobre a história da escravidão, da violência sexual contra mulheres negras e indígenas, e da opressão racial no Brasil contribui para a perpetuação de desigualdades e para a negação da identidade e da história de milhões de pessoas. Quais são as consequências para nós enquanto povo que em sua maioria é miscigenada de não conhecermos a nossa história? Como afeta nossa identidade, nossa pulsação, nossa capacidade de amar e de se relacionar coletivamente? O silencio não é só sobre a escravidão e todo o sistema econômico que fez a Europa um continente com tantas riquezas advindas da mercantilização de corpos. O silencio é sobre a tortura, os abusos sexuais, assassinatos, separação de famílias, apagamento de nomes, línguas, culturas, tradições de povos. O mecanismo de defesa da negação criado por Freud, se desenvolveu nas populações que descendem da escravidão de modo a conter a dor traumática vivida por gerações. O que significa a nível biológico profundo, várias gerações de uma mesma família passarem por torturas, abusos, etc. Quais as consequências a nível emocional, psíquico e energético?
Me permito aqui um exercício imaginário. Pensemos que o período oficial que durou a escravidão no Brasil foi de aproximadamente 1530 a 1888. Nesses 358 anos, quantas gerações de pessoas sequestradas e submetidas a uma condição traumática viveram em nosso país?
Em todos os estudos que pude encontrar, as pessoas escravizadas viviam, em média, entre 30 e 40 anos. Principalmente no início do tráfico humano para o Brasil, a estimativa é que o tempo de vida era ainda menor, devido às condições muito precárias, especialmente nas áreas rurais, onde os trabalhos eram duramente árduos. Imaginemos que, em 358 anos de escravidão oficializada (lembrando que ela seguiu de maneira ilegal por muitos anos e deixa consequências até hoje), aproximadamente 13 gerações de seres humanos foram submetidas a torturas e abusos de diversos tipos. Sem contar uma ruptura primária com suas terras de origem, língua, raízes culturais, nomes e tradições espirituais. Quais as consequências geracionais desse que foi uma das maiores violações dos direitos humanos em nossa história, que durou 13 gerações? Quais as consequências de esquecermos essa história? De amenizarmos essa história? De negarmos essa história?
Quando olhamos para o mundo atual, vemos uma Europa que enriqueceu às custas dessas 13 gerações, que são nossos ancestrais. Hoje, temos a oportunidade de recontar nossa história com um olhar crítico para a visão eurocêntrica com que ela nos foi ensinada. Hoje, felizmente, temos uma lei que obriga as escolas a ensinar a história da África e nos abre a possibilidade de compreender a história apagada de nossos antepassados e entrar em contato emocionalmente com as raízes fundadoras de nossas identidades.
A eficácia da ideologia racial dominante (democracia racial)
manifesta-se na ausência de conflito racial aberto e na desmobilização política dos negros, fazendo com que os componentes racistas do
sistema permaneçam incontestados, sem necessidade de recorrer a
um alto grau de coerção.
(Carlos Hasenbalg op, cit pág 246)
Em meu trabalho clínico é bastante comum observar principalmente nos pacientes negros uma grande ausência de informações sobre sua arvore genealógica. A maioria sabe muito pouco da historia de seus avós, e menos ainda sobre seu passado ancestral. Isso tem uma implicação emocional que vou tratar mais a frente no livro mas também nos fala diretamente sobre como o silencio e a negação são mecanismos costumeiramente usados para abordar a questão racial no Brasil. Vivemos no senso comum uma ideia fantasiosa de que somos um país racialmente democrático, com oportunidade para todos. Não existem diferenças entre as raças, somos uma única raça. Somos um povo belo miscigenado, uma grande mistura de povos. Porém toda essa romantização esconde uma história muito dura de entrar em contato. Na base da miscigenação de nosso povo estão gerações de abusos sexuais sofridos por mulheres negras, mulheres indígenas “pegas no laço”. Mulheres que em uma posição de vulnerabilidade foram forçadas a ter relações sexuais com seus senhores e muitas vezes a fazer a iniciação sexual dos fi lhos destes senhores. Nosso passado enquanto um país colonizado não pode ser ignorado quando estamos trabalhando em nosso consultórios.
Temos hoje mais evidencias científicas vindas do campo dos estudos da genética que comprovam o dado de que a miscigenação de nosso país tem como base a violência sexual de mulheres Afrodescendentes e Indígenas e também da violência e tortura as quais os homens indígenas e Afrodescendentes sofreram.
“Isso é resultado de um cruzamento que não é natural, reflexo da violência que indígenas e mulheres escravas sofreram. É o DNA confirmando aquilo que a história já contava. Uma cicatriz de violência do nosso país”, afirma a pesquisadora Lygia Pereira, coordenadora do estudo.
É importante percebermos no nosso lugar da psicologia de apoiar nossos pacientes, dentro das possibilidade que cada um carrega, a entrar em contato com suas próprias peles, com as histórias e marcas que cada uma delas dentro da sua autenticidade carrega.
Descontruir o mito de que vivemos numa democracia racial e que sim nossa cor importa, tem força, tem história é fortalecer o processo especialmente para as populações descendentes das diásporas Africanas e descendentes dos povos originários de uma construção identitária interrompida a tantas gerações atrás cujos efeitos são sentidos
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